sexta-feira, 19 de outubro de 2012

«Não se pintam almas; pintam-se corpos; e quando os corpos estão bem pintados… com um raio!… a alma, caso tenham uma, por todos os lados a alma irradia e transparece.»


«Olhe. Veja-me isto… a Vitória de Samotrácia. É uma ideia, é todo um povo, um momento heróico na vida de um povo, mas os tecidos colam-se, as asas batem, os seios incham. Não preciso de ver a sua cabeça para imaginar o olhar, porque todo o sangue que chicoteia, que circula, canta nas pernas, nas ancas, em todo o corpo, passou como uma torrente pelo cérebro, subiu até ao coração. Está em movimento, é todo o movimento da mulher, de toda a estátua, de toda a Grécia. Olhe, quando a cabeça se soltou, o mármore ficou a sangrar… Ao passo que lá em cima, com o sabre do carrasco, pode cortar o pescoço a todos aqueles queridos mártires: sairá um pouco de vermelhão, gotas de sangue, isso… Já levantaram voo para Deus, exangues. As almas não se pintam. E, repare, as asas da Vitória não se vêem, eu já não as vejo. Não pensamos nelas, tão naturais parecem. O corpo não precisa delas para levantar voo em pleno triunfo. Têm impulso próprio… Ao passo que as auréolas à volta de Cristo, das Virgens e dos Santos, só elas se vêem. Impõem-se. Aborrecem-me. O que é que quer? Não se pintam almas; pintam-se corpos; e quando os corpos estão bem pintados… com um raio!… a alma, caso tenham uma, por todos os lados a alma irradia e transparece.»


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